A ÚLTIMA PASSARELA


 

   Caminhou pelo quarto quase vazio, algumas peças de roupas amontoadas na cadeira, outras esparramadas pelo chão. O casal acabara de comprar o guarda-roupa. Madeira pura, ela garantiu. Tentou com esse argumento conseguir mais alguns trocados. A moça olhou para ela, depois para o noivo que estava ocupado em descobrir um defeito que reforçasse a pechincha.
              — É madeira de lei, pode examinar bem.
O noivo, percebendo a intenção, reforçou:
 — Mesmo que fosse de ouro, nem um tostão  a mais.
               Sem outras palavras a vendedora estendeu a mão. As manchas senis explodiram em gargalhadas.                         
Ao saírem a moça sussurrou:
— Parkinson
— Não, abstinência alcoólica.
Restavam ainda a cama, uma mesinha redonda, a cadeira quebrada e o espelho, nada de valor, nem mesmo as possíveis imagens que por ventura  aquele espelho pudesse  ter guardado. Olhou compadecida para os velhos trastes, enquanto que, no espelho, algumas  imagens relâmpago despediram-se dela para sempre.
Sentou-se na cama, continuando a olhar seu reflexo, desolada com a aparência, mergulhou num amontoado de fotos, separou algumas, uma linda moça usando maiô, uma capa e um cetro, tudo indicando coroação de “miss”; numa outra foto, um casamento foi separado violentamente e os restos não sabia porque estavam reunidos em um envelope. Sucatas de paixões, tempo perdido, vícios arrastados por tudo que valeu à pena, era agora penalizada.
Chacoalhou a velha colcha, jogando as lembranças no chão empoeirado do quarto, com esforço, usou a ponta dos pés para pisotear os destroços. Guardou com carinho apenas a foto da criança que foi levada pela mão de uma mulher.
— Será que ainda vive?
Não queria acordar os vivos nem ressuscitar os mortos. Não valeria à pena.
 Amarrado na ponta do lenço, tudo que restou dos seus tesouros: de alguns ela recebera flores, de outros perfumes, seu preço mais alto eram  jóias que, levadas a penhores sustentariam sua velhice.
Desatou o nó forte, com ajuda da ponta da tesoura, não sem  antes recorrer aos dentes, mas os  cacos que teimavam em doer, agora, foram cuspidos longe. Riu ao se ver mais banguela no espelho, e pensar que de nada adiantava chorar. Examinou a quinquilharia que restava, soltou um palavrão, depois de um gemido:
— Velhice duradoura e cínica, ficou para me assistir até o fim.
Um oficial de justiça bate forte na porta. Ela ajeita como pode o cabelo, passa um batom nos lábios e se prepara para fazer o que sempre fez tão bem. Olha para si e pensa pedir  um mês para ficar por ali. Não precisará o juiz saber e ela o fará ir às nuvens. Não tem dúvidas quanto aos  estragos causados pelo tempo, mas  tentará, nada mais tem a perder. Sabe que seu poder de sedução está tão falido quanto sua situação financeira, mesmo assim vai tentar.
 Dá um passo decidida, o moço bate outra vez. Refreia seu impulso, e analisa melhor a situação: Não deve explorar, uma semana já estará bom. Dá outro passo, quase cai. Tem que manter a altivez, ou ele pode achar que ela não vale nem três dias.
— Droga, não valho mesmo! O espelho confirma sua decadência.  O oficial insiste; ela, raivosa grita:
— Já vou, seu filho de uma...
 Não, ela não abriria mão do único bem que lhe restara, relutava em perder a educação, se bem que às vezes tinha vontade de mandar todos para o inferno.
— A senhora precisa assinar aqui, ao lado da assinatura da juíza.
 Era a desocupação do imóvel penhorado, para quitar dívidas. — ela assina ao lado do nome da menina. Agora sabia onde andava a menina do retrato, mas não iria acordar os vivos. O oficial  ignorou suas lagrimas, e sequer notou seu sorriso de felicidade.
Apoiada  na sua bengala,  arrastou uma pequena valise para a rua, junto ao peito sob a faixa de miss, levava a foto de sua filhinha e a certeza de que fizera o melhor.
  Foi assim, feliz, que desfilou  na última passarela.


Emília Goulart

Comentários

Rita Lavoyer disse…
Grande escritora!
Relatou a passagem de uma fase a outra com muita precisão. A narradora conseguiu ironizar a dura realidade, proporcionando a mim, sua leitora, o prazer de fluir na leitura,buscando o seu final. Com a elegância que lhe é peculiar, Emília me encanta.
Parabéns pelo texto.

Postagens mais visitadas deste blog

De moleque para moleque

SOU CAIPIRA SIM, SENHOR