CHAMAS QUE SE APAGAM

Estou bravamente lutando com uma temporada de seca. O céu promete que vai chover, mas um redemoinho chega levantando poeira e carrega minha inspiração. Sei que é uma estação parecida com o outono, já passei por outras. As palavras estão secas e caem como as folhas, quebradiças. A caneta brinca com pequenos rabiscos e textos inacabados são dispensados no cesto de lixo.
Minha inspiração foi ceifada por uma serra. O cajueiro veio abaixo, e o meu amigo e confidente bem-te-vi procurou outro lugar para se abrigar.
Inspiração é um fantasma que chega, se insinua e desaparece. Seu tempo é fugaz e, se não for capturada, com a rapidez de um raio escapa.
 Um casal de apaixonados morre no primeiro golpe da caneta, abatidos por um prosador, ou poeta, em uma estação de outono.
Mais um papel amassado que vai parar no lixo.
Em dias estéreis um cesto cheio desses papéis rabiscados pode gerar uma piada prosaica a circular pelo mundo sem que ninguém assine a paternidade.
Para evitar este constrangedor fim ao meu amontoado de papéis, este meu cesto de lixo jamais será reciclado. Vou levá-lo ao quintal e um palito de fósforo fará arder a paixão que com minha caneta não consegui.
A chama clareia a escuridão e posso observar melhor o menino que saiu para comprar pão e não voltou. A menina que como ninguém sentiu a adrenalina circular no corpo em um brinquedo super seguro. Ela não sobreviveu para nos contar como é. Também vejo passar por aquele clarão a outra menina que foi ver o mar pela primeira vez e não voltou para casa contando conchinhas e não falará pra ninguém que o mar é lindo. Chamas que se apagam.
Tantas histórias que a vida não terminou de escrever.
Não tenho o direito de reclamar da minha seca improdutiva. Melhor assim, que regar com o sangue destas crianças as páginas que amassei.
Existe quem faz. Há quem arme e com tudo isso cria um circo, e outros que exploram por tempos sem fim todos os acontecimentos tristes que a humanidade insensata produz.
Eu vou ficar com a minha seca, até o cajueiro crescer e meu bem-te-vi voltar para brincar de esconde-esconde entre as folhas coloridas, depois saltitante vir comer minhas migalhas de pão.
Enquanto o cajueiro não vigora e a inspiração não floresce, eu mais uma vez vou reler e reescrever o Descaminho dos Anjos, que espera há seis anos por um ponto final. Talvez porque a cada dia os descaminhos se multiplicam e muitas crianças não retornam.
Emília Goulart é membro da UBE União Brasileira de, do Grupo Experimental da AAL e da Cia dos blogueiros.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

De moleque para moleque

SOU CAIPIRA SIM, SENHOR