O Segredo do Casarão


                                                       O Segredo do Casarão
O casarão antigo, afastado aproximadamente cem metros da trilha, chamava a atenção por sua bela arquitetura. Não que eu entendesse alguma coisa sobre arte ou engenharia, mas apesar do desgaste ele se mantinha imponente; grandioso, belo e mal assombrado.
 Todos os anos eu ia passar as férias escolares no sítio do meu avô materno. Não era perto e a viagem durava aproximadamente de três a quatro horas em cavalos bons de marcha, único meio para chegar até lá no início dos anos cinquenta. Saíamos de casa na madrugada, pois o objetivo era chegarmos para o almoço. Meu pai gostava de seguir pela estrada velha. Ganhava tempo e tinha água fresca a vontade para matar a sede dos animais e a nossa. Ele conhecia todas as trilhas, por ter nascido naquela região. De cada tapera abandonada ele tinha um causo para contar. O sitio dos Messias era parada obrigatória para descanso e um bate papo regado a cafezinho.  Os primos prometiam um almoço, sempre para a próxima vez. A decepção era superada pelo imaginário encontro de restos de insetos ou fios de barba enroscados no alimento servido. Visão que afastava temporariamente o apetite. Embora o destino fosse sempre o mesmo, as viagens sempre nos revelavam surpresas. Ao som de guizos das cascavéis os cavalos ficavam em alerta. E ao menor sinal de perigo o refugo era certo e se o peão não fosse bom era jogado fora dos arreios. Mas, do casarão assombrado, já se ouvia a batida do velho monjolo. Sua história mantida em segredo por longos anos estava ali resguardada por muitas lendas, que variavam entre lamentos ouvidos a léguas de distância e açoites, que faziam alguém perder o sono na pacata vila onde morávamos. Era engraçado o silêncio respeitoso, mantido pelos viajantes cavaleiros que nunca tinham tempo para responder minhas interrogações. Naquele trecho do caminho de onde se avistava o sobrado, por cinco minutos não se ouvia nada, o gemido do monjolo também cessava. No império do silêncio a não ser o resfolegar atento dos cavalos ou o farfalhar das aves vigilantes, anunciando visitantes indesejáveis. Nada se ouvia.  Nunca vi alguém por perto. Do mato ao redor, o tempo se encarregava da roçagem. Na temporada da seca a vista se descortinava e o soberbo casarão se revelava. Sobre o parapeito largo, suas janelas altas de duas folhas. A moldura onde as janelas se encaixavam exibiam na sua parte superior um acabamento que lembrava meio queijo fatiado. Aquela imagem associada à janela, talvez se desse pela fome que já se anunciava.
 Era lindo de se ver. Cada lateral do casarão ostentava oito magníficos janelões. Na frente uma enorme sacada protegida por balaústres talhadas com arte e carcomida pelo tempo ocupava toda a largura da construção. Os meus olhos de menino me faziam pensar em Rapunzel me atirando suas lindas tranças.  No vestido, rosas de tecido aplicadas, o babado rendado cobria os alvos braços deixando os ombros livres para ser admirados. Tudo isso completava o estilo romântico que eu tão bem conhecia através das muitas leituras de contos sugeridas pelo meu avô.
Cresci com duas ideias na cabeça, uma comprar novamente o sobrado que já havia pertencido a família, embora com sua fama de assombrado tivesse afastado outros compradores. E uma segunda que era desvendar seus mistérios. Tudo em volta foi vendido menos o sobrado tombado pela crendice popular. Quando o assunto se relacionava ao sobrado, era a portas fechadas entre os poucos membros ancestrais da família.
Muitas vezes perguntei ao meu pai se aquela história de casa assombrada vinha do tempo que eles foram os donos ou se compraram o sobrado com aquela fama. Meu pai desconversava.
Um dia, depois de formado, motivado pela curiosidade e uma boa dose de tristeza em ver a bela arquitetura campestre ali abandonada, decidi que era hora de encarar o desafio que me acompanhou desde menino. Dizia uma das lendas sobre o casarão, que ali existiu uma senzala e durante a abolição o malvado feitor havia enlouquecido e ateado fogo com os escravos acorrentados lá dentro.  
Lembrei-me das conversas ao redor de uma fogueira e da pergunta feita ao Tiadolino, negro velho que já nasceu livre, mas nunca abandonou nossa família. Era amigo e segundo meu pai, seu irmão, por ter sido amamentado por minha avó quando nasceu.
E aí Tiadolino? É verdade que um feitor contratado pelo meu tetravô incendiou uma senzala ali?
A negação foi veemente e a pergunta recebida quase como uma ofensa.
– O menino está de brincadeira? Não conheci seu tetravô. Tenho a idade de seu pai e não sei de nada. Fui criado por seu avô e sei tanto quanto seu pai.
Notei o quanto fui ingênuo tocando numa ferida que apesar do tempo ainda não cicatrizara. Pedi desculpas e não falamos mais no assunto. Tiadolino como era conhecido, morreu logo depois da conversa, pois já estava muito doente. Meu pai faleceu quando eu cursava o último ano da faculdade de engenharia e eu nunca mais tinha voltado aquele lugar.
A lembrança do casarão abandonado me incomodava. Resolvi que o visitaria. Deveria estar mais desgastado pelo tempo e talvez não fosse possível uma restauração. Se esse fosse o caso eu o demoliria, pois estava decidido a acabar com aquela lenda sobre o casarão mal assombrado. Dois dias se passaram com essas ideias atrapalhando meus projetos. Por fim decidi. Passava das dezesseis horas e o tempo estava fechando, anunciando chuva para a noite, A estrada era de terra, mas muito utilizada pelos fazendeiros da região que a mantinham em boas condições.
Distante daquele tempo quando gastávamos de quatro a cinco horas para aquele percurso a cavalo, com duas horas eu estaria lá. Portanto à noite eu já estaria de volta.
Ri e fiz pilhéria da situação relembrando palavras do meu avô quando montei pela primeira vez. “Com medo, peão”? Vá lá e mostra que é corajoso.”
O tempo começou mudar e vi que não teria muito tempo para aquela diligência. O casarão era todo cercado e tinha como única passagem um mata-burro com uma porteira de arame farpado. Pareei o cavalo junto à porteira, mas era tarefa difícil sobre aquele cavalo arredio conseguir abrir a velha e enferrujada porteira. Preparava-me para apear quando alguém se aproximou e abriu a porteira. Levei um grande susto ao ver tão perto de mim um vaqueiro. Logo percebi que ele estava perdido por aqueles lados, mas sabia melhor do que eu como abrir aquela cerca e com grande agilidade a porteira estava aberta. Jogou-a para o lado e disse:
– Deixe a porteira aberta na volta não terá ninguém para ajudar e pode ser que esteja apressado.
Notei um sorriso de escárnio, e perguntei: Porque eu estaria apressado?
Seu sorriso expandiu se transformou em grande gargalhada, mostrando seus dentes encardidos de tabaco. Saiu batendo com o rebenque de couro trançado, na perna da bota suja de lama.
Para onde ele iria? Não tive tempo para perguntar, olhei em volta e não vi mais o peão para agradecer.  Dei duas voltas em torno do casarão e nada vi que chamasse minha atenção. Chamei embora sabendo que ninguém me responderia. O cavalo estava inquieto, caso eu soltasse a rédea não sei onde ele iria parar. Embora a noite se anunciasse minha curiosidade não permitia que eu saísse dali sem entrar. Aguardei um pouco mais para comprovar se de fato o sobrado era mal assombrado.
Uma das janelas fechadas se abriu repentinamente e por mim passou uma lufada de vento gritante, diferente de qualquer outro som que já ouvi na minha vida. Confesso que sou mesmo avesso às crendices, mas aquilo me arrepiou. Pensei nas pessoas em desespero que tentaram fugir do fogaréu.
Ora... Foi o vento. Tentei me convencer e sai a galope sem fechar a janela e muito menos a porteira. Dei a mim mesmo a desculpa do tempo que se fechava rápido com a chegada da noite e da chuva.
Esperei alguns dias para dar oportunidade a todos para saírem do casarão e voltei. De longe vi o sobrado iluminado por um candeeiro e ouvi o som da dança dos negros. Fiquei até o fim, quando extenuado abandonei o local da bizarra fantasia.
No outro dia mandei tratores para lá:
– Derrubem tudo.
Voltaram decepcionados nada mais havia para ser derrubado. A tempestade da noite anterior havia feito o trabalho.

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