Borboletas Carpideiras
Borboletas Carpideiras
Certos animais contam com o carinho e
proteção de algumas pessoas, contudo, são detestados e temidos por outras.
Borboletas, com elas mergulho em devaneio ao observá-las, naquele bailado
aéreo, para mim elas são lindas e
lépidas, não as vejo apenas como insetos lepidópteros. Se as tivesse conhecido
com este estranho nome, por certo sentiria medo, mas foram-me apresentadas como
borboletas. Na infância adorava caçá-las, com delicadeza colocava-as entre as
folhas dos meus cadernos, eram ao mesmo tempo brinquedos e adornos. Como me
afeiçoei ao bichinho! Já ouvi as mais variadas histórias sobre as mesmas,
algumas belas outras aterrorizantes.
Disseram-me certa vez que borboletas eram
almas de pessoas jovens, que voltavam a terra para um passeio. Se por um acaso
se apaixonassem, arrastavam seus namorados para uma sepultura , festivas,
convidavam as amigas para um banquete, onde eles seriam devorados.
Nunca acreditei nessas histórias, para mim pura inventiva
popular, porém, minha mãe as temiam, quando descobria os esconderijos das
minhas lindas borboletas elas desapareciam e minha mãe cinicamente me dizia que
elas tinham voado.
— Foram para o céu como todas as pessoas
lindas que morrem.
Quando suas historias não mais me convenciam,
contou-me que elas transmitiam uma doença que podia causar cegueira. Na minha
adolescência, queimou meu caderno de recordações por ser ele um dos
esconderijos. Na verdade aquela sua fobia por borboletas causou muitos
desentendimentos entre nós. Durante uma discussão, acusei-a de ciumenta e
invejosa que as temia pelo encantamento que provocavam com aquele bailado.
Bem seja qual for a razão, minha mãe não foi
única naquela fobia por borboletas.
Certa vez, num velório, atraídas pelo cheiro
e colorido das flores, borboletas faziam uma dança macabra em volta do caixão.
O corpo velado era de um homem ainda muito jovem. De um lado a mãe do rapaz
chorosa rezava o terço, do outro a esposa observava o vai vem daquelas
criaturinhas adoráveis e coloridas, que às vezes pousava sobre o falecido.
Algumas pessoas incomodadas por aquelas
passistas, que fora de época se apresentavam em local tão inoportuno,
preferiram sair para o amplo jardim da capela, onde as borboletas deveriam
estar. Porém, o mais angustiante incomodo, provinha daquele lamurioso bater de asas.
A esposa incomodada saia dava uma volta pelo
jardim e voltava, a mãe, coitada, não arredava pé de onde estava, e com o terço
espantava as borboletas que logo voltavam. À noite elas deram uma trégua,
adormeceram dentro do caixão. A
indignação da esposa já era bem visível, embora tudo fizesse para não
demonstrar.
Naquela noite de chuva, entre raios e
trovões, ouvi muitas histórias sobre medo, o medo do sobrenatural perde apenas
para o da violência. Mas quando o velório acontece em uma capela dentro de um
cemitério, essas posições se invertem, e o terrível medo que sentimos de bichinhos
é qualificado de aversão.
Um homem se afastou para ir tomar o famoso
café fúnebre, mesmo sem o conhecer, acompanhei-o, disse ser tio do defunto e
pelo tanto que o sobrinho era mulherengo, não duvidaria caso as mariposas o
levassem para um enterro especial.
Enquanto o tio comentava a fraqueza do
sobrinho, um gato assustado, com os relâmpagos e trovões entrou correndo na
pequena copa, onde era servido o café, e foi se esconder debaixo da mesa.
Confesso, desconhecia que a herança genética em algum momento da nossa vida se
manifesta, tão logo ele entrou eu quis sair, acabava de descobrir minha fobia
por gatos. O terrível diagnóstico ainda não havia se confirmado, quando uma
pane na rede elétrica deixou tudo às escuras.
A tênue luz das velas e os relâmpagos eram
toda iluminação do ambiente, além daqueles olhos que me focalizavam por debaixo
da mesa. Quando as luzes se apagaram me
agarrei ao homem, ele também estava temeroso, me disse que tinha aversão aos
gatos e apenas de pensar que pudessem entrar pelas pernas das calças, lhe dava
arrepios. Confessei sem rodeios que eu tinha medo de gatos, mas para subir
pelas pernas das calças teria que ser rato. Senti que a mentira dele acabava de
transpor o prazo de validade, e ele queria mesmo era me apertar, não opus
resistência, e facilitei o trabalho dele. O gato de um salto ganhou a porta,
fingimos que não vimos e continuamos como estávamos um totalmente agasalhado
nos braços do outro. Lembrei-lhe: de que falar mal de quem já morreu traz
sempre alguma consequência.
– Foi falar mal do defunto, olha no que deu!
– Aproveitei para me enroscar um pouco mais naquele corpo sarado.
Silenciaram as azas das borboletas, para dar
lugar ao tilintar de plaquinhas das sepulturas. O vento frio fazia bater alguma
porta enquanto outra gemia emperrada resistindo para não se fechar. Ninguém se
atreveu a dar-lhes força e as portas continuaram seu lamento mórbido. O terror
era evidente, e nos grudamos como siameses.
Naquele ambiente onde cada respirar já era
uma aventura não faltou histórias de sobrenatural para alongar a noite.
Irritada
liguei para a companhia de energia elétrica, pedindo que verificassem a
rede. Respondeu-me uma voz cavernosa:
– De onde fala?
Respondi.
–Do cemitério. Aqui está faltando luz.
Silêncio. O homem que estava grudado em mim,
perguntou:
–O que foi?
–Desligaram.
–Tente outra vez, pode ser que caiu a
linha. – Tentei novamente:
– Moço, por favor, aqui é do cemitério,
estamos no escuro.
– Porque não pensaram nisso enquanto estavam
vivos? Ah... ah ...ah.
Só podia ser algum engraçadinho, e aquela não
era hora para brincadeira.
Amanhecia quando a energia foi restabelecida,
podíamos verificar que todos estavam com olheiras, o tio do defunto, mais
pálido que o próprio, no escuro ele me pareceu mais bonito. A esposa do morto
adormecera, na cadeira colocada ao lado do caixão, a mãe, coitada, deixou o terço escapar das mãos e aflita procurava-o
no chão.
Quando deram falta das borboletas,
descobriram que o defunto também havia desaparecido. Foi um alvoroço.
Morreu ou não morreu?
Em volta do caixão circulava uma procissão de
curiosos com esdrúxulas suposições.
O tio dele me lembrou:
– Não lhe disse, elas o levaram para um
enterro especial.
–Ora, estamos diante de um caso de polícia, e
você fica brincando, alguém roubou o cadáver. O tio me apertou um pouco mais.
Tornamo-nos muito íntimos depois de uma noite como siameses.
Curiosos se aproximaram do caixão e alguém
pisou no rabo de um gato que escapava entre as pernas das pessoas. O miado soou
como um alarme despertando outros. De todos os cantos surgiam gatos correndo assustados.
Eu tremia agarrada ao tio do defunto, que por magia de alguma bruxa, voltou a
ficar bonito. Acabei de fazer nova descoberta o medo tem poderes fantásticos.
– Viu meu medo agora está justificado, os
gatos comeram seu sobrinho.
Carregamos o caixão vazio, para um
sepultamento simbólico. Seguiam-nos em
procissão as borboletas carpideiras.
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