A criança que fui

 

                 


A criança que fui

Hoje ao pousar meus olhos no caderno guardado do  Grupo escrevivência, descobri ter finalizado o meu trabalho sem encontrar a criança procurada pelo tema da reunião. Talvez nunca mais a encontre. A criança  que fui está se perdendo pelo longo caminho, deixou-se devorar por um lobo mal chamado tempo. Retomar a velha estrada é impossível. Ainda não encontrei a resposta para a pergunta feita naquela noite.  O que ficou em mim, da Nitinha que um dia eu fui? Onde ficou aquela pureza de anjo travesso, que escondia os filhotes da cachorra Campina, para vê-los abocanhados e devolvidos ao ninho?

Pois é menina, onde anda você? Estou te buscando. Vou juntar seus pedacinhos, nas lembranças guardadas e colar bem coladinhos. Não quero te perder num cantinho alemão qualquer, nem por becos esclerosados de uma vida muito longa.  Acho que era esta a proposta da professora Cidinha Baracat, que buscássemos a criança que um dia se soltou de nós.

Escrever a vivência em tempo presente é olharmos pelo retrovisor e anotarmos o que não queremos que o futuro apague. Ao seguirmos por uma longa estrada o que fica para trás vai se tornando invisível pela poeira, as mágoas vão encolhendo lavadas pelas chuvas, pelas curvas perigosas passamos a trezentos por hora.

Porém a estrada percorrida continua lá, hoje baixada a poeira, encontrei a Nitinha estava na beira da estrada, ao ver me aproximar correu. Ela prefere o abrigo da saudade e as consolações das lembranças. Não quer ser resgatada, está bem onde está.

Ouvi bem longe, fugia da minha memória a voz da minha tia:

– Pare de correr que eu quero te pegar. Eu vou te pegar. Assim não vale, você passa por aberturas tão estreitas. Bem feito, rasgou o vestido novo.

—Não me importo, a mãe faz outro. — A Nitinha está congelada nesta frase, mergulhei numa saudade imensa.

Minha mãe não vai fazer outro, a tia deixou de correr para me pegar. Agora elas descansam e eu ainda corro. Não sei por que corro tanto. Talvez porque o final desta estrada já fica visível e eu queira me encontrar com o tempo e pedir para dar mais uma volta. Resgatar algumas possibilidades perdidas.

 O tempo passou, é tão transitória a vida que não percebi, que a criança que fui também fugia de mim com o tempo. Um pouco mais a frente, a reencontro, passava como um raio montada no Corisco, cavalo manso, mas veloz. Ainda não sei se caí ou voei do cavalo. Sei que ouvi a prima  gritar:

–Tia... Corra. A Nitinha caiu do cavalo.

Tantas vezes caí do cavalo, nunca me machuquei seriamente. Depois desaprendi de cair, os tombos não eram iguais. A vida não é mansa.

Nitinha, em que estrada você se perdeu? Vou caindo e levantando, querendo te alcançar, mas, você sempre foi mais esperta, a Emília já caminha lento, carrega no ombro a responsabilidade da união de uma grande família, um desejo enorme de ser útil ao próximo e reconhecida como escritora. Alimento este sonho com as lembranças da infância, momentos questionáveis da adolescência e os segredos do mundo que consigo reunir. Nas entrelinhas cuido do presente, desdobro o passado e tento desvendar o misterioso futuro. Se for verdade que tudo está escrito, eu li muito pouco.

Ah... Nitinha, como eu gostaria de encontrá-la para devolvê-la a sua mãe, sem as cicatriz que a deformaram. Um dia eu a encontro menina travessa. Vou devagar porque o caminho é lindo, as árvores e flores do meu jardim da infância tem um cheiro bom que permanece e me guia.

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