A ÚLTIMA PASSARELA

Emília Goulart *

   Caminhou pelo quarto quase vazio, olhou para algumas peças de roupas amontoadas na cadeira, outras esparramadas pelo chão.
 O casal acabava de comprar o guarda-roupa. Madeira pura, ela garantiu, tentou com esse argumento, conseguir mais alguns trocados. A moça olhou para ela, depois para o noivo, que estava ocupado em descobrir um defeito que reforçasse a pechincha.
 — É madeira de lei, pode examinar bem.
O noivo percebendo a intenção reforçou — Mesmo que fosse de ouro, nem um tostão mais.
Sem outras palavras, a vendedora estendeu a mão. As manchas senis explodiram em gargalhadas.                         
Ao saírem a moça sussurrou:— Alzhaimer!
— Não, abstinência alcoólica.
Restavam ainda a cama, uma mesinha redonda, a cadeira quebrada, nada de valor. Olhou compadecida, para os velhos trastes, enquanto do espelho algumas imagens relâmpago, despediram-se dela para sempre junto com o velho guardaroupa
Sentou-se na cama, desolada com a aparência de tudo aquilo que um dia foi seu ninho de amor. Mergulhou num amontoado de fotos, separou algumas. Uma linda moça usando maiô, uma capa e um cetro, tudo indicando coroação de “miss”; numa outra foto, um casamento foi separado violentamente e os restos não sabia porque estavam reunidos em um envelope. Sucatas de paixões, tempo perdido, vícios arrastados, por tudo que valeu a pena, era agora penalizada. Chacoalhou a velha colcha, jogando as lembranças no chão empoeirado do quarto, com esforço, usou a ponta dos pés para pisotear os destroços. Guardou com carinho apenas a foto da criança que foi levada pela mão de uma mulher.
— Será que ainda vive?
Não queria acordar os vivos nem ressuscitar os mortos. Não valeria a pena.
 Amarrado na ponta do lenço, tudo que restou dos seus tesouros: de alguns amantes ela recebera flores, de outros perfumes, seu preço mais alto eram  jóias que, levadas a penhores sustentariam sua velhice.
Desatou o nó forte, com ajuda da ponta da tesoura, não sem  antes recorrer aos dentes, mas os  cacos que teimavam em doer, agora, foram cuspidos longe. Riu ao se ver mais banguela no pequeno espelho de bolsa que sobrara, e pensar que de nada adiantava chorar. Examinou a quinquilharia que restava, soltou um palavrão, depois de um gemido:
—Velhice duradoura e cínica, ficou para me assistir até o fim.
Um oficial de justiça bate forte na porta. Ela ajeita como pode o cabelo, passa um batom nos lábios e se prepara para fazer o que sempre fez tão bem. Olha para si e pensa pedir um mês para ficar por ali. Não precisará o juiz saber e ela o fará ir às nuvens. Não tem dúvidas quanto aos estragos causados pelo tempo, mas tentará, nada mais tem a perder. Sabe que seu poder de sedução está tão falido quanto sua situação financeira, mesmo assim vai tentar.  Dá um passo decidida, o moço bate outra vez. Refreia seu impulso, e analisa melhor a situação: Não deve explorar, uma semana já estará bom. Dá outro passo, quase cai. Tem que manter a altivez, ou ele pode achar que ela não vale nem três dias.
— Droga, não valho mesmo. Os trôpegos passos confirma sua decadência.  O oficial insiste , ela raivosa grita:
— Já vou, seu filho de uma...
 Não, ela não abriria mão do único bem que lhe restara, relutava em perder a educação, se bem que às vezes tinha vontade de mandar todos para o inferno.
— A senhora precisa assinar aqui, ao lado da assinatura da juíza.
 Era a ordem para desocupar o imóvel penhorado, para quitar dívidas. — ela, orgulhosa, assina ao lado do nome da juíza. Agora sabia onde andava a menina do retrato, mas não iria acordar os vivos. O oficial ignorou suas lagrimas, e sequer notou seu sorriso de felicidade.
Apoiada na sua bengala, arrastou uma pequena valise para a rua, junto ao peito sob a faixa de miss, levava a foto de sua filhinha e a certeza de que fizera o melhor.
  Foi assim feliz que desfilou na última passarela.

                                   Emília Goulart é membro do Grupo Experimental da Academia Araçatubense de Letras, da UBE e da Cia dos Blogueiros

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