Coisas do saci eu vivi


 

Coisas do saci eu vivi

 

Naquele tempo, Papai Noel entrava pelas chaminés, mula-sem-cabeça era real, e o saci vivia ali pelo campo se escondendo em moitas de bambu, quando o vento soprava forte, era fácil ouvir o chamado da sua flauta. Isso era um sinal de perigo, porém, aquele assobio que vinha das moitas de bambu atraia as crianças para suas aventuras e aqueles ouvintes atentos se juntavam armados de estilingues, bolinhas de argila e embornais. Armados, saiam aos pares, na caça ao saci. Eram personagens das próprias histórias.

Oculta na mata cinzenta da memória, esta história como a ouvi ou vivi emerge das cinzas do bambuzal.

Foi na Rua Rui Barbosa, de uma pequena cidade do interior de São Paulo que nasci.

      No final da rua as casas e as vendas davam espaços para as chácaras, que ficaram conhecidas pelos nomes dos proprietários, Chácara do Zezico, do Messias, do Dito Carreiro e outras.

      Quando nasci encontrei uma família formada por meus pais, meus avos e meus tios, que há muito tempo me aguardavam. Era grande a harmonia e eu vivia feliz e paparicada por todos.

       Porém, minha mãe vivia uma grande busca, sua fé andava abalada, uma vez por semana me pegava pela mão e saia em busca de uma luz, que nunca trazia para casa. Íamos e voltávamos em plena escuridão, às vezes a lua nos socorria e por pena iluminava nosso caminho. Mas era bom encontrar outras crianças, brincávamos muito, enquanto minha mãe ouvia falar de coisas de outro mundo, ou que o mundo não acaba aqui, e tentava acreditar.

      Certa noite ao voltarmos para casa como de costume e tendo a lua como companheira, dávamos à volta como sempre fazíamos para entrar pela porta da cozinha, onde meu avô nos esperava sentado perto do fogão de lenha na companhia dos meus tios, meu pai sempre estava viajando.

      Ao aproximarmos da porta minha mãe conteve seu impulso habitual e segurou forte meu braço, ao mesmo tempo tapou minha boca me obrigando ao silêncio. Eu estava muito preocupada com o vento que soprava do bambuzal, o som da flauta do saci me fazia arrepiar. O tempo que ficamos ali se mostrou bem maior, todos os sons verdadeiros e imaginários foram ouvidos, minha mãe estava grudada na porta e demonstrava estar ouvindo alguma coisa muito séria, minha pequenina mão sofria espremida pela dela, mas me sentia segura, dali o saci não me atrairia. Mesmo se ele tentasse me sugar para o centro da moita onde arrancaria de mim uma perna, ou tentasse colocar em minha cabeça aquela touca vermelha, ridícula, minha mãe não permitiria.

      Por fim exigindo silêncio, pé-ante-pé ela foi me puxando até chegarmos à rua. Longe das sombras das árvores e iluminada pelo clarão da lua, a beleza do seu rosto, banhado em lágrimas, contrastavam com o duro e frio olhar rasgando a escuridão, senti mais medo, até esqueci o saci.

     Em seguida ela soltou minhas mãos e acelerou os passos, fiquei para trás. Desprotegida, voltei a ouvir o assobio da flauta que vinha de outra moita, era da chácara dos Messias, ali se não bastasse ser mais um esconderijo de sacis ainda tinha morcegos que dormiam durante o dia e a noite por qualquer motivo davam voos rasantes e assustadores. Por sorte a lua já mostrava as paredes rosadas da casa da Amélia nossa prima. Já na porta, minha mãe conteve a respiração ofegante, e olhou-me como quem pede aprovação, lembro-me bem que apavorada concordei, sem saber com o que concordava. Ela bateu palmas, e lá de dentro perguntaram:

                    — Quem é?

     — Sou eu, Amélia.    

    Reconhecida pela voz, Amélia logo abriu a porta, e antes que nos mandasse entrar minha mãe foi contando tudo. Tudo que na sua versão acabava de acontecer.

     Amélia conhecia bem minha mãe, soube logo ao vê-la que o assunto era sério, e fechou a porta para prestar mais atenção.           

    —Ao chegar ouvi meu sogro, a quem eu quero como um pai e meus cunhados que amo como filhos, dizer coisas horríveis a meu respeito, falavam entre outras coisas em tomar minha filha, e que sou uma louca.

    Minha mãe estava mesmo nervosa e tudo que dizia, afirmava que eu também ouvira. Eu apenas ia confirmando não sei se por inocência, pressa ou piedade. Na verdade eu queria era entrar logo, pois podia ouvir as risadas dos meus primos, pelo jeito meu avô estava contando suas histórias.

   Quando acabou, e a deixou, falar, Amélia disse:

   — Impossível, O compadre está aqui há muito tempo contando suas histórias, e os teus cunhados com ele.

   Minha mãe pediu desculpas e meu avô a desculpou, mas disse:

   — Quando procuramos Deus em toda parte, é porque Ele não está em nós, aí corremos o risco de encontrar o Diabo.

    Nunca me esqueci do que meu avô disse naquela noite, portanto, acredito que vivi.

               

                                                                                        Emília Goulart

 

          

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