Uma tregua no presente

 


Uma trégua no presente

Toda manhã ao acordar antes de colocar meus pés no chão, coloco-os no meu passado. Caminho segura por ele, sei muito bem por onde andei. Não foi fácil chegar ao presente, passei por dificuldades e contornei obstáculos. Muitas vezes descobri que não deveria seguir os outros. Os guias não conheciam o caminho ou propositalmente me levavam para a beira de um abismo. Sofri escoriações e quebrei a cara mas, apesar delas, cheguei inteira.

 O retorno ao passado fez de mim uma pessoa mais segura, quase todas as manhãs é prazeroso saber que Deus está no comando, aprendi a desviar-me das armadilhas que conheço, evitar encontros que não deixaram saudades e ver além das aparências as intenções reais. Algumas pessoas ficaram bem definidas no passado e quanto mais o tempo as distanciam do presente, mais nítida é a lembrança que os prestigia.   

Gosto de me demorar no passado que me acompanhou até o presente com segurança. Mas, não posso viver no meu passado. Com carinho e cuidado, nele guardo recordações de pessoas muito queridas. A cada nova manhã, aproveito esta adorável sensação de estar viva para organizar o meu dia, esquecida de que ele não me pertence. Tenho medo das surpresas que o presente ainda oculta numa tentativa vã de me poupar de alguma dor. Aí vem aquele tal sexto sentido me espionar.  Como ele é apressado, inseguro e bipolar, como adivinhador muitas vezes se engana e Graças a Deus ele some envergonhado.

Tudo que de fato tenho vem comigo do passado e apenas amanhã ao acordar, saberei com certeza o que me restou do hoje para me seguir.  

Toco-me, preciso ter a certeza de que meus sentidos ainda fazem sentido. Após rezar a oração que minha mãe me ensinou, “Santo Anjo do Senhor” com cuidado e por minha conta acrescento, Senhor não me transporte para o futuro ainda. Criei os filhos, mostrei-lhes o caminho certo que eu conheço, mas, quem disse que a vida é só isso? Ainda falta tanto a fazer. Caso tenha alguma passagem de ida reservada, lembre-se por uns dez anos não vou ter tempo de embarcar. Tenho muito a fazer, livros começados para terminar e, além do mais, minha bagagem para esta viagem anda bem desorganizada. Preciso dobrar meu orgulho e jogar fora algumas mágoas que não cabem mais em mim e aumentar a minha fé. Tenho muito medo do homem que toma a palavra do Pai.

 Dou um tempo ao tempo, que tem se tornado meu maior inimigo. Vai tempo, nesta sua velocidade maluca, porque eu não estou com pressa. Hoje meus passos caminham lentos e não pedem passagem. Se esta minha falta de pressa te incomoda, saiba que isto se chama sabedoria. Demorei para adquirir e não é qualquer tarefa que me roubará o aprendizado.

Tempo não me tome o presente que é tão belo, nem seja cruel roubando o meu passado. Tenho nele guardado tanto afeto e descobri a pouco, que dignidade nunca enche um fardo e o quanto estou feliz por abrir o meu passado sem susto e ver o tanto de dignidade ele comporta, sem se tornar mais pesado.

                                  Emília Goulart


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