Enfado

Enfado

 



Hoje vai se repetir o ontem com a mesma letargia de dias tão iguais. Sem nenhuma perspectiva à vista, veio-me a memória uma palavra antiga, enfado.

Sinto preguiça para levantar e conto as horas que faltam para que eu volte a me deitar. Assim vou tentando encurtar esses dias longos com tudo que sei e tentando aprender outras tarefas que não sei. Mas tudo tem se tornado enfadonho. A noite chega para emendar-se ao dia, sem nenhum propósito.

Fui seduzida pela promessa de que tudo passaria rápido. Sou uma pessoa ativa, com meus muitos saberes e afazeres, fui preenchendo os dias com um romance iniciado, crônicas mal acabadas, organização de armários e arquivos. Conversas ao telefone e mensagens de pessoas que não conheço, mas, pessoas como eu apenas bebendo o tempo e se envenenando. Estamos de porre.

Viajei através de leituras, perambulei pela vida e fiz um retorno ao passado e me vi como minha avó e minhas tias que viviam na roça. Preenchiam o tempo dando milho às galinhas. Tentei ser feliz à moda delas, não tenho galinhas, a vida assim fica mais difícil, alimento-as com imaginações e vou contando com o dia e a noite olhando a linha do horizonte sem ir além. Sempre pensei que meus ancestrais eram felizes e que aquele mundo era muito bom sem tantas informações confusas. Ninguém sabia o que era fake news. A única coisa que sabiam era que mentira tem pernas curtas.

 Veio o isolamento, um mês, dois, três... Ele vai se esticando e já ouço a minha voz repetindo as palavras delas “Que enfado”! Ai...ai!”

 As visitas domingueiras para minha tia deixaram de acontecer e as conversas ao telefone sem assunto estão vazias. Não tem mais café da tarde, bolinho de polvilho nem jogo de baralho. Não tem missa e também foi cancelado aquele capricho ao me arrumar nas manhãs de domingo para ir à igreja.

Sem notar tenho usado sempre o mesmo vestido, é o que está mais fácil. Ele também vive sua rotina estressante, do corpo ao varal, do varal ao corpo. Meu filho que trabalha fora e me vê apenas nos finais de semana, me perguntou:

– Mãe, não tem outros vestidos?

Notei na sua fisionomia que a minha falta de vaidade o deixou preocupado. A resposta que dei a ele parece ter saído de um passado muito distante e sem retorno.

–É o enfado.

Outro dia acordei com muita disposição de me livrar deste enfado. Corri para o banheiro tomei um banho quente, cantei sob o chuveiro, depois me besuntei de cremes, olhei no espelho e quase desisti da opção pelos cabelos brancos. Senti-me uma idiota com esta preocupação tão vulgar e resolvi prestar atenção no noticiário.

“Animais silvestres são devolvidos aos habitats depois de longo tempo em cativeiro”. A insensatez humana não tem limites; na tarde do mesmo dia, ouço “animais feridos fogem dos incêndios nas florestas e morrem atropelados em rodovias”. Desta vez alguns são resgatados com ferimentos múltiplos. Depois de tratados e curados são devolvidos à mata, em algum lugar que pareça ser seguro. Enquanto existir mata, eles precisam aprender a viver novamente em liberdade, não é um processo fácil.

Pensei na nossa semelhança com os animais e senti a sede deles, sua fome os medos de pisar em brasas e vi no olhar da onça pintada um clamor pelo que nos resta da Natureza mãe.

Enquanto estamos nos protegendo em nossas cavernas de um vírus quase invisível, chamas vorazes de ambições consomem a natureza. A flora arde, os animais morrem e os seres humanos insensíveis e egoístas habitantes dos palácios disto ou daquilo, governam e se eximem do atroz espetáculo visto pelo mundo inteiro.

Não quero encontrar culpados. Queremos soluções.

Emília Goulart


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